A direita convencional, ao aderir ao lavajatismo e ser por
ele golpeado, não mais conseguiu segurar as suas bases políticas. De repente,
vimos os eleitores de FHC, Serra, Alckmin e Aécio de camisa verde e amarelo
gritando mito
Mito, em uma de suas acepções mais simples, é sinônimo de
mentira. Entretanto, quando nos aprofundamos no estudo sobre o mito, percebemos
que se trata de um fenômeno muito mais complexo, analisado por diversas
disciplinas, sendo que, na Ciência Política há um campo de estudos em mitologia
política. Sob essa perspectiva, a política é analisada não sob seus aspectos
racionais, mas por seus elementos motivadores inconscientes, irracionais, por
assim dizer.
Como explicar que um capitão de carreira militar duvidosa,
deputado federal do baixo clero, agressivo nas palavras, preconceituoso,
autoritário, saísse de sua quase insignificância e fosse catapultado à
Presidência? Como um presidente com desempenho pífio em todas as áreas, que
desdenhou do vírus, da pandemia, dos doentes e da vacina, sendo diretamente o
responsável pela política de morte adotada, conta ainda com tanto apoio
popular?
Não duvidamos que muitos espertalhões lucraram com a
cloroquina, assim como há muitos interessados em acabar com as terras indígenas,
com as reservas naturais, com os direitos trabalhistas, com os serviços e o
patrimônio públicos e a soberania nacional, e que, por esses motivos, por assim
dizer racionais, estão com o governo. Mas, esses são a ínfima parte dos que
apoiam o governo Bolsonaro. Então, como entender a idolatria que uma boa
parcela de brasileiros tem por ele?
No Brasil, a velha mitologia da conspiração comunista tomou
novos alentos a partir do momento que o senhor Olavo de Carvalho transformou o
Foro de São Paulo na maior organização criminosa do mundo, uma vez que, segundo
o mesmo, de forma inédita o Foro de São Paulo havia promovido uma simbiose
entre os partidos de esquerda e o crime organizado, obtendo proveitos mútuos.
À medida que os partidos de esquerda na América Latina, em
especial o PT no Brasil, foram obtendo sucesso eleitoral, foi se solidificando
nos setores médios da sociedade a convicção de que tal partido se transformara
em uma quadrilha que, de assalto em assalto aos cofres públicos, jamais
perderia as eleições. Foi contra a conspiração do mal que se sublevaram os
cidadãos de bem. Aliás, essa é a verdadeira função das mitologias
conspiratórias, uma vez que, ao excitarem o imaginário apocalíptico,
desumanizando o inimigo a ponto de atribuir-lhe poderes demoníacos, elas ativam
aos “do bem” a organizarem o seu contracomplô (Girardet).
Sendo o mito uma chave para a interpretação da realidade,
ele a traduz-se num conjunto de imagens articuladas e simples, facilmente
assimiláveis e fortemente mobilizadoras (Sorel). Foi dessa crença pueril que se
desenvolveu nos quarteis, nas magistraturas, no Ministério Público e entre os
profissionais da mídia convencional a ideia esdrúxula de que, qualquer arma,
mesmo as ilegais, valeriam para combater tais forças. E foi por essa crença
que, principalmente os profissionais de mídia, se calaram, quando não se
curvaram, diante das ilegalidades cometidas por Moro e os procuradores de
Curitiba ao desestabilizarem o governo Dilma e ao caçarem implacavelmente o
presidente Lula.
Foi também esse imaginário apocalíptico que traduziu a luta
política na batalha final entre o bem e o mal, que fez emergir Bolsonaro como o
salvador. A direita convencional, ao aderir ao lavajatismo e ser por ele
golpeado, não mais conseguiu segurar as suas bases políticas. De repente, vimos
os eleitores de FHC, Serra, Alckmin e Aécio de camisa verde e amarelo gritando
mito. Afinal, a direita educada não reuniria mais as qualidades necessárias
para combater o próprio demônio. Era preciso alguém que representasse a indignação
do cidadão médio, sua arrogância, acompanhada de sua ignorância e o seu repúdio
a qualquer tipo de bons modos.
O fato é que, ao encontrar massas predispostas e
interessadas pela política o vírus do totalitarismo proliferou (Arendt). E, ao
que tudo indica, será muito difícil retornar com o gado aos antigos currais da
democracia liberal. Enquanto isso, Bolsonaro segue firme ao segundo turno das
eleições de 2022 – suas redes sociais continuam ativas na produção de mentiras,
ao mesmo tempo que reforçam a mensagem de que que o mito precisa de apoio em
sua cruzada contra o comunismo gayzista bolivariano. E não será com meias
verdades que iremos derrubá-lo.
*Dimas Antônio de Souza é professor do Instituto de Ciências
Sociais da Pucminas e autor de “O mito político no teatro anarquista
brasileiro”.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da
Revista Fórum.
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